Vida de Cirurgião

10/12/2018

Autor: Dr. Orlando Pereira Faria

 

Dentre as especialidades médicas a cirurgia tem algumas particularidades bastante interessantes. A começar pela formação do cirurgião, quando ele termina a residência está apenas se iniciando. A partir daí é que ele vai desenvolver a “coragem de curar”. É imprescindível nesse período contar com a ajuda e orientação de um tutor, um cirurgião mais experiente que vai guiá-lo e encorajá-lo a tomar as decisões mais difíceis. Isso porque ser cirurgião é somar a compaixão e doçura do verdadeiro médico à agressividade do bisturi.  Opostos que se tocam e se fundem misteriosamente! Talvez, por isso mesmo, cirurgiões sejam pessoas diferentes, paradoxais e surpreendentes, capazes de um afago e em seguida de proceder, um profundo talho no corpo humano. 

 

Dizem que para ser um cirurgião completo o médico deve ter olhos de lince, coração de leão e mãos de moça. Sua vida familiar, muitas vezes é difícil. Exige companheira sensível, compreensiva e filhos tolerantes. Tudo isso somado a uma postura de alerta constante, exigência detalhista, cobranças intermináveis. O  cirurgião é, antes de tudo, um sujeito intrasigente e estóico. Humor, nem sempre o desejável.


Se a medicina exige estudo constante, a cirurgia exige estudo e práticas incessantes. O conhecimento cirúrgico é difícil de se obter e arduamente mantido atualizado.
Além das doenças, é necessário conhecer as técnicas operatórias - sempre em evolução - e a anatomia detalhada de cada região. E conviver com as exigências do tratamento, confrontadas com as economias do paciente, ao mesmo tempo em que sabe, cada tempo, cada movimento, cada material gastos são fundamentais para o resultado final. 

 

No teatro cirúrgico ou sala de cirurgia ou quirófano ele é o autor e o ator, o diretor e o roteirista. Tudo o que acontece na sala de operações tem de ser de seu total conhecimento. Sua atenção no ato operatório tem de ser absoluta. Às vezes conversa, assovia ou cantarola para aliviar suas próprias tensões, muitos gostam de ouvir música durante a cirurgia. Um bom rock ajuda a melhorar a percepção espacial. Alterna conversas informais - quando o tempo cirúrgico o permite - com silêncios esmagadores, quando todo o seu cérebro, nervos e músculos estão totalmente direcionados a um movimento fino, complexo, essencial. Caminha com instrumentos cortantes e contundentes, por entre estruturas frágeis; porém vitais. Além das pinças, tesouras e agulhas de aço, usa grampeadores e grampos de titânio e bisturis ultrassônicos que vibram 50 mil vezes por segundo. Um descuido, um movimento menos coordenado, pode significar um desastre: uma mutilação ou até mesmo a morte daquele que colocou a sua vida em suas mãos.

 

Toma decisões rápidas e às vezes brutais. Faz ordens diretas, sem admitir qualquer contestação ou reticências. Nesse ambiente não cabe o “por favor” ou mesmo o “muito obrigado”. Quem não souber se comportar dessa maneira, deve estar trabalhando no local inadequado. Depois , assume a responsabilidade de tudo e por todos.
Afinal, ali ele é o escolhido do paciente. Os outros, compõem o seu grupo de trabalho. Essenciais , sem dúvida. Importantíssimos. Mas quase sempre totalmente desconhecidos pela família do paciente, que, entretanto nunca se esquece de quem foi o cirurgião, e é dele que vão ser cobrados os resultados bons ou ruins.
Deve fazer um esforço para conjugar a prepotência que caracteriza seu trabalho, com o respeito àqueles que o ajudam. Se o êxito é alcançado numa cirurgia, todos se retiram aliviados e felizes. Contudo, o cirurgião continuará a acompanhar o paciente por muitos dias, mantendo o seu organismo equilibrado depois das inúmeras alterações  produzidas pela cirurgia e pela anestesia ou seja , a resposta metabólica ao trauma cirúrgico.


Quem opera não dorme tranqüilo. As complicações podem ocorrer a qualquer momento. Só não as tem quem não opera. Passará horas e dias de angustia, na expectativa da resposta terapêutica de seu tratamento. Rezando ou torcendo pela sua evolução, segura e tranqüila.   Esperando que as bactérias não prevaleçam sobre os cuidados de assepsia que foram tomados. Aguardando ansiosamente a eliminação do primeiro flato pelo paciente, que revela a normalização da peristalse intestinal, após uma cirurgia abdominal feita com sucesso. Acostumado a decisões imediatas, tem que aguardar o processo cicatricial do organismo, muitas vezes debilitado pelas doenças que acometiam o paciente. Imediatista tem de se tornar expectante.


E, durante todo esse tempo, levar sua vida social e familiar como se nada estivesse a preocupá-lo. Conversando e rindo, muitas vezes seus pensamentos retornam ao hospital, ao quarto do paciente, imaginando o seu estado e a sua recuperação. Enquanto seus amigos , parentes e familiares nada percebem o que vai em seu mais sigiloso interior, ele sofre e se angustia, enquanto sorri e fala tranqüilo... Todo esse fardo não é difícil de carregar para o verdadeiro cirurgião, aliás o que mais deseja esse profissional são muitos pacientes e muitas cirurgias, de preferência as mais complexas e trabalhosas.

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